A Escola de Altos Estudos Crianças e Adolescentes em Situação de Risco: Dimensões Éticas, Intervenção e Inovação Científica tem como objetivo principal disseminar conhecimento científico de ponta sobre o impacto de experiências de adversidade e negligência no desenvolvimento humano, bem como discutir possibilidades de intervenção, mantendo um olhar atento para as questões éticas envolvidas.
Embora o Brasil tenha produzido avanços importantes em diferentes indicadores sociais referentes às crianças e adolescentes (e.g., redução da mortalidade infantil, redução do analfabetismo, redução dos índices de pobreza (Denboba et al., 2016; Unicef, 2016), ainda há muitos desafios a serem enfrentados. Por exemplo, mais de 3 milhões de crianças e adolescentes (4 a 17 anos) estão fora da escola e 75,4% abaixo de 3 anos não frequentam uma creche ou centro de educação infantil; aproximadamente 30 crianças são assassinadas por dia no país e a taxa de homicídios de crianças negras do sexo masculino chega a ser 4 vezes maior em comparação a crianças brancas (UNICEF, 2016). Dados do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência sugerem que apenas 20% das crianças brasileiras com problemas de saúde mental têm atendimento médico e psicossocial adequados (INPD, 2014). Esses dados são muito preocupantes, em especial, porque diferentes ramos da ciência que se dedicam ao estudo do desenvolvimento infantil (Psicologia/ Psiquiatria/Neurociências do Desenvolvimento e Educação Especial) têm produzido, nos últimos anos, dados inequívocos sobre os efeitos devastadores de experiências de adversidade, violência e negligência sobre crianças e adolescentes (e.g., Koller, Santana, & Rafaelli, 2018; Nelson, Fox, & Zeanah, 2014; Zeanah, Humphreys, Fox, & Nelson, 2017).
Além disso, o contexto de desenvolvimento de boa parte das crianças e adolescentes brasileiros é marcado por indicadores de risco que podem impactar severamente a saúde desta população (Dell’aglio & Koller, 2017). A literatura nacional e internacional tem documentado uma série de eventos ou circunstâncias que compõem as situações de risco. Majoritariamente, as pesquisas neste campo centram-se na compreensão do desenvolvimento psicológico de crianças e adolescentes nas seguintes situações: a) contextos de extrema pobreza; b) exposição a diferentes formas de violência; c) engajamento em atividades ilícitas; d) exposição à violência urbana; e) presença de familiares com transtornos psicológicos e comorbidades (Sanders, Munford, Anwar, Liebenberg, & Ungar, 2015; Theron & Theron, 2013). Quando as crianças e adolescentes em situação de risco não dispõem de recursos protetivos que as auxiliem no enfrentamento desses eventos adversos, os prejuízos são ainda maiores (Ungar, 2013).
PROPOSTA
A proposta desta Escola de Altos Estudos é a de investir neste campo investigativo em três dimensões indissociáveis: a elucidação de abordagens preventivas, a divulgação de modelos clínicos e institucionais bem-sucedidos no atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco e a análise aprofundada dos aspectos éticos que norteiam a pesquisa e a intervenção com estes grupos. Espera-se, desse modo, que as atividades previstas subsidiem discussões que promovam inovação científica e colaborem na estruturação de novos modelos de pesquisa e intervenção no cenário nacional, tendo como inspiração modelos internacionais com comprovada eficácia.
Políticas públicas e programas de prevenção voltados para a primeira infância e adolescência são comprovadamente mais vantajosos (e representam um menor custo para a sociedade) do que ações focadas no tratamento das condições resultantes de experiências iniciais adversas (Richter et al., 2017); no entanto, os investimentos em desenvolvimento na primeira infância e na adolescência no Brasil ainda são limitados, especialmente quando comparados aos investimentos feitos em outros países. Uma explicação possível é a de que a divulgação dos benefícios advindos de tais investimentos ainda é tímida e o conhecimento sobre como elaborar e implementar políticas públicas/ programas de intervenção voltadas para esses públicos é restrito (Denboba et al., 2016). O resultado é desastroso. Cerca de 250 milhões de crianças com menos de 5 anos (43%), vivendo em países de baixa renda ou em desenvolvimento e que estão em situação de pobreza extrema, apresentam um risco elevado de não alcançarem seu pleno potencial humano (Ritchter et al., 2017).
Mesmo reconhecendo a valiosa contribuição de modelos preventivos, também se faz necessário elaborar, em contextos de risco, programas de intervenção (seja no modelo clínico ou institucional) direcionados para crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados. Estas ações devem objetivar a criação de estratégias de fortalecimento psicológico das vítimas, possibilitando a superação dos efeitos adversos e, consequentemente, favorecendo os processos de superação e resiliência. A notória experiência dos pesquisadores estrangeiros convidados contribuirá para a construção de modelos de intervenção que já possuem validação científica, pois estão baseados em evidências e demonstram alta eficácia quando utilizados adequadamente.
A este conjunto de ações, soma-se uma proposta de formação de pesquisadores brasileiros por meio de reflexões críticas sobre aspectos éticos da pesquisa e intervenção com crianças e adolescentes em situação de risco. A ênfase nesse tema evidencia, sobretudo, uma preocupação com o risco dos modelos investigativos e as práticas interventivas produzirem a revitimização ou acentuarem os efeitos adversos aos quais essa população já está exposta.
Os três pesquisadores estrangeiros convidados apresentam ampla experiência em pesquisa e em intervenção com crianças e adolescentes em situação de risco social ou que apresentam transtornos do desenvolvimento e/ou mentais. A produção intelectual dos três convidados é impressionante, premiada e com reconhecimento internacional, como pode ser observado nos currículos em anexo a essa proposta. Além de fornecer elementos para temas ainda pouco explorados no contexto nacional, a presente proposta pode contribuir para o fortalecimento de ações interinstitucionais futuras, tendo em vista as similaridades dos temas de interesse dos pesquisadores envolvidos.
PESQUISADORES CONVIDADOS
O Dr. Charles Nelson III (Harvard Medical School, EUA) é referência mundial na Neurociência Cognitiva e do Desenvolvimento, um campo interdisciplinar voltado para as interfaces entre desenvolvimento cerebral e cognitivo. O Dr. Nelson ocupa atualmente dois cargos na Harvard Medical School: Professor de Pediatria e Neurociências e Professor de Psicologia no Departamento de Psiquiatria. Ele é atualmente Diretor de Pesquisa no Developmental Medicine Center/ Boston Children’s Hospital. Em seu laboratório, ele lidera uma equipe de pesquisadores que investigam diferentes aspectos do desenvolvimento infantil em crianças de desenvolvimento típico e atípico. Os interesses neste laboratório convergem para um objetivo comum: o de compreender como as experiências de uma criança podem afetar o seu cérebro em desenvolvimento. O programa de pesquisa do laboratório do Dr. Nelson inclui três linhas principais de pesquisa: a) o desenvolvimento da habilidade para reconhecer faces e emoções faciais; b) autismo (mais recentemente, diferenças de gênero associadas ao autismo); c) crianças em risco social e psicológico e como experiências de negligência e adversidade podem afetar seu desenvolvimento. O Dr. Nelson ganhou também notoriedade internacional quando apresentou os resultados do Bucharest Early Intervention Project. Esse projeto foi realizado após um convite do governo da Romênia que buscava uma forma de avaliar o impacto da experiência de institucionalização de crianças órfãs naquele país. Os resultados do projeto apontaram para efeitos devastadores sobre o desenvolvimento físico, socioemocional e cognitivo dessas crianças, levando o governo da Romênia a elaborar novas políticas públicas voltadas para essa população.
É importante destacar que o Dr. Nelson e o Centro de Medicina do Desenvolvimento na Universidade de Harvard vêm desenvolvendo parcerias com grupos de pesquisa no estado de São Paulo: a) o Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência (INPD), coordenado pelo Prof. Euripedes Constantino Miguel Filho (Departamento de Psiquiatria, USP/SP; e b) com o Instituto Pensi, associação vinculada à Fundação José Luiz Egydio Setúbal, que tem como missão promover a saúde infantil pelo desenvolvimento da pesquisa, disseminação do conhecimento, voluntariado e projetos sociais para influenciar a sociedade a cuidar das crianças do Brasil. Em particular, o Dr. Nelson é pesquisador principal do projeto “Early Institutionalization Intervention Impact Project” realizado em colaboração com Prof. Edson Amaro Jr., do Instituto PENSI e que se dedica a avaliar os efeitos da institucionalização no neurodesenvolvimento infantil. Este projeto, em seu desenho, prevê a expansão e escala para outras instituições, de maneira que a presença conjunta da USP e UFSCar na proposta atual fortalece e estimula as oportunidades de extensão e colaboração entre estas instituições.
A Dra. Linda Liebenberg (DalhousieUniversity, Canadá) é pesquisadora, avaliadora e consultora no campo da resiliência e desenvolvimento comunitário, com um interesse especial por crianças e jovens em situação de risco e vulnerabilidade social. O seu trabalho é voltado para a construção/elaboração de recursos e programas que possam promover desenvolvimento saudável em jovens expostos a diferentes situações de risco, por meio da construção de estratégias formais e informais de promoção de resiliência. A pesquisadora possui também, trabalhos de grande relevância em pesquisas sobre métodos visuais, desenhos longitudinais e quantitativos de pesquisa e intervenção psicológica. Atualmente, a Dra. Liebenberg mantém parcerias com diversas instituições e organizações internacionais como a Right to Play, The World Bank, the World Health Organization, Save the Children Denmark, e Public Health Agency of Canada. No Brasil, a Dra. Liebenberg trabalha em parceria com o Prof. Dr. Alex Pessoa (PPGPsi/UFSCar). Essa parceria, que já possibilitou publicações em conjunto (Pessoa & Liebenberg, 2017; Pessoa & Liebenberg, 2018), também resultou na construção de um projeto de pesquisa intercultural envolvendo 5 países (Brasil, Canadá, Croácia, África do Sul e Nova Zelândia). A pesquisa tem como objetivo central investigar como famílias em situação de vulnerabilidade social conseguem mobilizar recursos psicológicos e sociais para o enfrentamento de situações de adversidade. Os dados permitirão uma melhor compreensão de como as diferentes culturas produzem estratégias de enfrentamento, bem como permitirão uma avaliação do impacto de políticas sociais em seus usuários. Como parte do processo de integração dos pesquisadores das diferentes nacionalidades, será realizado, no mês de novembro de 2018, na Irlanda, um encontro para reunir os participantes do projeto. O evento é financiado pela UNESCO e já assegurou recursos financeiros para que o pesquisador Alex Pessoa participe na condição de conferencista. A pesquisa está prevista para ser iniciada no ano de 2019. A vinda da Dra. Liebenberg representa, portanto, a possibilidade de continuidade de ações já iniciadas, bem como o fortalecimento de propostas colaborativas que se desdobrem em publicações e estudos interculturais. Por fim, cabe salientar que a pesquisadora também realizará diversas ações no Rio de Janeiro, pois vários pesquisadores interessados em seus trabalhos (Profa. Sandra Cabral e Prof. Eduardo Henrique P. Pereira (UFF); Profa. Vanessa Barbosa Romera Leme (UERJ) e Profa. Maria Angela Mattar Yunes (UNIVERSO) já se organizaram para recebê-la durante sua estadia no Brasil.
A Dra. Ilina Singh (University of Oxford, UK) ocupa atualmente o cargo de Professor of Neuroscience and Society; é Co-Diretora do Welcome Trust Centre for Ethics and the Humanities e é Distinguished Research Fellow no Oxford Uehiro Centre. Sua pesquisa é centrada nas dimensões éticas e sociais de inovações em Neurociência, Psiquiatria e áreas afins, com particular interesse pelos impactos translacionais dessa pesquisa para crianças e suas famílias. A Dra. Singh tem contribuído ao longo dos anos para diferentes organizações científicas como the UK National Institutes of Clinical Excellence (NICE), US National Institutes of Mental Health (NIMH) e the Nuffield Council on Bioethics. Ela também é Co-Chair do Ethics Advisory Board for the EU-AIMS project (www.eu-aims.eu), um projeto sobre tratamentos do autismo e é consultora do National Autism Project (http://www.nationalautismproject.org.uk). A visita da Dra. Singh representará uma oportunidade valiosa para o público participante da EAE aprender mais sobre os cuidados éticos na pesquisa com crianças e adolescentes com transtornos mentais, do desenvolvimento ou em situação de risco social e/ou psicológico. Além disso, espera-se poder estabelecer projetos em colaboração com a Dra. Singh, em especial, pelo fato de que uma egressa do Curso de Graduação em Psicologia da UFSCar (e Ph.D. pela University of Cambridge), Dra. Gabriela Pavarini, é atualmente pós-doutoranda no laboratório da Dra. Singh. Ambas têm expressado muito interesse em trabalhar em projetos de cooperação internacional com instituições de pesquisa brasileiras.
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO
Os programas de pós-graduação participantes da presente proposta são bem consolidados e com experiência internacional. Tanto os dois PPGs da UFSCar (PPGPsi e PPGEES) como os da USP (PPG em Psiquiatria e PPG em Saúde Mental) são programas de excelência (os dois primeiros são nota 6 e os dois últimos são nota 7 de acordo com a última avaliação da CAPES). Destacamos também que docentes tanto dos programas da UFSCar como do de Psiquiatria da FMUSP são membros/pesquisadores de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, que são coordenados por membros da equipe: a Profa. Deisy das Graças de Souza, coordenadora do INCT-ECCE e o Prof. Euripedes Constantino Miguel Filho, coordenador do INPD. A presente proposta de EAE está muito alinhada com os objetivos dos dois institutos, em especial, porque seus programas de pesquisa incluem projetos e programas de intervenção voltados justamente para crianças e adolescentes, de desenvolvimento típico e atípico, em situação de vulnerabilidade ou com risco para transtornos do desenvolvimento. O Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental da USP-RP tem como uma das suas linhas de pesquisa “Fatores de Risco e Proteção ao Desenvolvimento” que tem como objetivos principais: a caracterização de comportamentos típicos ou desadaptados de etapas específicas do desenvolvimento; a identificação de variáveis preditores e a eficácia de intervenção psicológica sobre dificuldades próprias de etapas do desenvolvimento. O Laboratório de Pesquisa em Prevenção de Problemas de Desenvolvimento (LAPREDES), coordenado pela Profa. Maria Beatriz Martins Linhares (membro da equipe da EAE), está vinculado a essa linha, e ao longo de sua história, tem gerado dados de pesquisa valiosos em temáticas de interesse para a presente proposta: prevenção de problemas de desenvolvimento, fatores de risco e proteção ao desenvolvimento de crianças vulneráveis nascidas pré-termo, impacto psicológico de enfermidades e hospitalização na criança e na família, entre outros.
Os programas de pós-graduação do estado do Rio de Janeiro (UERJ, UFF e Universo) receberam nota 5 na última avaliação e a Escola de Altos Estudos representa uma oportunidade valiosa de ampliar a internacionalização dos mesmos por dois caminhos distintos: a) pela possibilidade de contato dos docentes e alunos com os pesquisadores convidados e de ampliação do seu conhecimento sobre uma temática com tanta relevância científica e social; e b) pelo fortalecimento das iniciativas de cooperação internacional já existentes.